Relic? Como relicar sua guitarra sem fazer m.....! (Telecaster de Freijó)
Luthier

Relic? Como relicar sua guitarra sem fazer m.....! (Telecaster de Freijó)


Paulo May    


(obs: antes de fazer perguntas e ou postar comentários, leia aqui: CLIQUE)


         Primeiro, desculpem o ar arrogante do título. Não sou expert em relicagem e nem acho que as minhas ficaram tão boas assim, mas que tem muita guitarra "relic" ridícula por aí, tem!

         A palavra inglesa "Relic", originalmente utilizada para objetos religiosos antigos mas hoje aplicada para antiguidades de valor em geral, acabou virando um neologismo (ou estrangeirismo, mais especificamente) aqui no Brasil, principalmente no mundo guitarrístico.
Não só a adotamos como substantivo, pareando com a nossa vernácula "Relíquia", como já a transformamos no verbo "Relicar" (neologismo lexical), assim como fizemos com o "Deletar". Relicagem, portanto, seria o ato de relicar. Em suma, envelhecer artificialmente alguma coisa. O trabalho artístico de relicagem existe há muito tempo, está geralmente ligado ao artesanato e possui técnicas específicas diversas, a maioria aplicável em guitarras.
Particularmente, considero esse estrangeirismo muito útil e é até difícil acreditar que a palavra "Relicagem" não existia na língua portuguesa.

Como já mencionei em um post anterior, essa moda de envelhecer guitarras, reza a lenda, iniciou-se dentro da Fender Custom Shop, acho que nos anos 90. Aparentemente eles fizeram uma Telecaster para presentear o Keith Richards e ele a devolveu dizendo mais ou menos isso: "Se vocês derem uma gastada nela, eu a tocarei". Daí a coisa não parou mais... :)

Dito isto, e antecipadamente pedindo desculpas aos proprietários das mesmas, apresento-lhes algumas "pérolas" negativas dessa arte:

Exemplos de relicagem ruim

         A Fender Custom Shop hoje tem uma divisão só pra relicagem. Embora a técnica tenha melhorado muito, a essência randômica do processo de envelhecimento natural de uma guitarra praticamente impede que o processo seja muito automatizado. Por isso, temos também algumas pérolas bem feinhas (e caras) saídas da Custom Shop. Nesses casos, não devemos confundir "exagero" com "heavy relic":


Tenho amigos guitarristas que acham ridículo comprar uma guitarra "falsamente envelhecida". Um lado meu também acha isso, mas não deixo de apreciar relics bem feitos.

Como já me perguntaram várias (muitas) vezes sobre os relics que faço em algumas guitarras, tava na hora de um post sobre isso. Depois de decidir fazê-lo, pesquisei um pouco na internet e descobri muitos sites com dicas fantásticas. Tô até arrependido de não ter feito isso antes, pois minhas relicagens foram todas puramente intuitivas. Mas deu pro gasto :)

Como ponto de partida temos que sempre considerar o processo de envelhecimento natural de uma guitarra - os anos e anos de pequenas batidas, arranhões, pó, gordura, suor, luz... Até o oxigênio ajuda a envelhecer as nossas preciosas. O envelhecimento é. portanto, um fenômeno lento, aleatório e cumulativo.
Não adianta pegar uma lixa e raspar algumas bordas da guitarra pra retirar a tinta. Esse relic "instantâneo" é horroroso e extremamente artificial:

Essa tele tá muito feia. Putz! Ela apresenta o principal erro de relicagem: utilização de apenas lixas e "lesões" com limites das regiões regulares e lisos. Isso definitivamente não acontece no processo natural. No detalhe:


Também ridículo é o que vi em um vídeo no Youtube: um cara fica jogando e arrastando a guitarra pelo chão durante uns 5-10 minutos e depois acha que ficou "ótimo". Bah!

Uma telecaster Custom Shop em especial, pode confundir, pois apresenta o famigerado "exagero" na região de encosto do braço direito: é a Esquire 54 do Jeff Beck. Aquilo foi proposital e feito por John Maus (Walker Brothers), de quem Beck comprou a guitarra, na tentativa de acrescentar os contornos de uma strato. Ele simplesmente não quis pintá-la após fazer os cortes e um desavisado pode achar que aquilo foi provocado pelo tempo/desgaste. Observem que John Maus fez o contorno de trás também.:


Bem, mãos à obra. Vou descrever como faço meus relics, da maneira mais fiel possível para evitar uma avalanche de perguntas:

Vocês já viram a Strato "Wally" de marupá (clique para o link):




E a Telecaster Butterscotch também de marupá (clique para o link):




         Pois bem, paralelamente aos relics, eu estava numa fase de testar (novamente, mas acabou de vez) madeiras brasileiras e encomendei com o Adriano Ramos, da RDC Guitars de Belo Horizonte, um corpo de telecaster de FREIJÓ. Tava louco pra saber como o freijó soaria no formato tele. Observem que, como faço os relics de forma meio intuitiva, nunca arrisquei num corpo de alder ou ash. Se desse algum problema de acabamento e o Freijó soasse maravilhoso (nem tanto), seria só encomendar um novo corpo com o Adriano...
Eis o corpo quando chegou. 3 peças, como sempre muito bem feito, só faltando o lixamento final:


Eu queria um relic semelhante ao da Tele branca do Vince Gill, mas a tinta branca em spray é terrível. Não sei por que, mas escorre bem mais que as outras. Então voltei pro velho rolinho, como havia feito com as duas anteriores. Se a ideia é relicar, pintar com rolo é até mais fácil.
Depois de algumas demãos de branco puro:


Passo 1: PINTURA



Como o rolinho (e qualquer coisa exceto spray) deixa as camadas muito ásperas e rugosas, Eu passei uma lixa 320/400 após 2 ou 3 demãos.
Em seguida, como já estava nos meus planos, fui acrescentando algumas gotas de corante amarelo (tava usando tinta à base de água, que não é  a adequada para madeiras, mas eu tinha tempo pra deixar tudo secar bem). A cada demão, colocava umas 5 a 10 gotas de corante. Nas últimas duas demãos, acrescentei 5 gotas de corante verde. Isso foi proposital porque é o que ocorre na natureza: a porção de qualquer tinta branca que está em contato com o meio ambiente sempre vai amarelar com o tempo - às vezes, um amarelo esverdeado. Quando eu fosse lixar/arranhar/riscar/esfregar, já teria naturalmente um "degradê" nos limites das bordas.
No final, tava assim:


Na relicagem, é  interessante não sermos muito "regulares" nas demãos, por incrível que pareça :)
Lixei novamente para deixar a superfície sem muitas rugosidades e já aproveitei aí para lixar algumas áreas mais do que outras. Onde eu pretendia fazer um relic mais pesado, lixei mais, porém ainda sem expor a madeira. Só queria chegar mais no branco inicial nessas áreas.

Material para o relic: lixas (200/400 para a parte pesada e no final, 600 e 1200), limas diversas (a tubular foi importante aqui), chave de fenda (ou qualquer metal com corte), corantes (ppte o amarelo e marrom), grafite em pó (para a "sujeira" - aqui pode ser até pó de verdade mesmo. Cinza de cigarro também é ótima) e óleo de peroba.



Comecei lixando e limando as áreas principais. Novamente, é essencial que não sejamos regulares, temos que evitar a todo custo a uniformidade. Em alguns pontos atue mais, em outros menos.Alterne entre as lixas e as limas e de vez em quando, faça algum risco mais agressivo com a chave de fenda. Não abuse da profundidade, exceto em alguns pontos focais e bem pequenos (que simulariam a guitarra batendo em algum objeto pontiagudo):
Então, regra número 1:
Evite isso aqui:

Coisa horrível. Tem coisa mais feia do que um "feio" padronizado e focado??



Início da relicagem:

Passo 2: MACHUCANDO A GUITARRA




Observe como existe uma textura rica e irregular, tanto na pintura quanto no padrão aleatório. O local escolhido para o foco da relicagem não é aleatório, óbvio - é sempre alguma região onde há mais atrito natural. Na parte traseira, nunca podemos nos esquecer do foco na região onde a guitarra bate no cinto e/ou botão da calça. No detalhe:


Depois de parar muitas vezes, olhar muitas vezes, de perto, de longe, de lado, parece que tá ok. Deu de machucar a guitarra.


Passo 3: SUJEIRA!

         Agora, precisamos simular a sujeira que vai acumulando com o tempo e está sempre acentuada nas partes "machucadas". Lembro também que, numa situação natural, as lesões na guitarra são feitas gradativamente, então, o grau de sujeira nunca pode ser igual pra todas as marcas. Algumas nem é bom sujar - teoricamente, são as mais recentes... :)


         Começo sujando com corante amarelo e um pentelho de marrom, novamente, aleatórios. Além de escurecer um pouco os machucados, os corantes acentuam o degradê das bordas/limites deles. Deixo secar por uns 30 minutos e depois retiro com panos secos, úmidos e bem úmidos. O seco, bem esfregado, com força, faz o corante penetrar mais. Se passar do ponto, retire com os panos molhados. Se passar demais, use lixa 400 ou 600 - sai tudo. Deixe o corante amarelo manchar um pouco a guitarra, relaxe. Se necessário, dá pra retirar as manchas excessivas mais tarde, antes de passar o verniz incolor final.


Nesse ponto, já começo a utilizar umas pitadinhas de grafite. Selecione algumas lesões para serem mais "antigas" - nessas, carregue mais o grafite.  Pingue uma gota de óleo se quiser que penetre mais na madeira - isso deixa o aspecto ainda mais envelhecido e eu utilizo ppte nas regiões principais - nessa guitarra, acima do nível do prendedor da correia e na região de encosto do braço. Esfregue com os dedos. Use o polegar para maior pressão, se necessário. Nas guitarras de marupá, que é uma madeira bem clara, utilizei mais grafite. No freijó, menos.
Daqui em diante, não dá pra explicar muito mais. É no gosto de cada um. Eu nunca faço tudo de uma vez. Gosto de ficar um dia sem ver e reavaliar depois com o "olho fresco". Coloco as peças por cima e fico olhando... :)



Passo 4: DETALHES FINAIS

Nessa guitarra, quase no final achei que avancei demais no ponto de apoio do braço e num outro perto dele. Como tinha a tinta em mãos, peguei um cotonete e repintei/escondi alguns pontos. São os pontos em detalhe (observe depois como estarão mais atenuados nas fotos finais):


Um close up da relicagem. Tem gente que pensa que dá pra fazer esse efeito só com lixa. Nem pensar.


No final, passo lixa 600 (bem leve), penduro novamente a guitarra e utilizo verniz em spray/lata pra "fixar" toda a bagunça e sujeira. 3 a 5 demãos. Espero dois dias pra secar bem, depois lixa 1200 (eventualmente um pouco da 600 antes, se necessário), cera automotiva Grand Prix para dar uma leve lustrada final e deu pra bola! :)

Acho que foi mais difícil decidir a cor do escudo do que relicar a guitarra! KKKK! Mas ficou o preto.

Seguem as fotos finais. Pode não ter ficado um relic "Custom Shop", mas tá BEM melhor e mais natural do que aquelas baixarias que mostrei antes.




Daí, quando fui colocar o braço, tive que resolver entre o com escala de maple e o de rosewood. Se fosse o de maple, teria que relicar o braço. Rick Parfitt ou Vince Gill? Ganhou o Vince Gill e dei uma envelhecida no braço também (nem pergunte, explico em outro post):



         Não quero mais fazer relicagem - tá perdendo a graça, mas acho que vou ter que fazer uma última vez - sempre quis uma tele branca velhinha e quase deu. Infelizmente, o  Freijó ficou um pouco abaixo das minhas expectativas. Não que tenha soado mal - só não soou do jeito que eu gosto. Ontem coloquei o braço de rosewood e o timbre melhorou bastante, mas ainda tá soando com muito punch de médios graves e falta um pentelhinho de brilho. Tenho certeza que se eu colocar uma ponte ferrosa (essa é uma Gotoh de latão), ela vai ficar melhor ainda - pro meu gosto, é claro. No ponto que tá já deve agradar muita gente. :) O Freijó é uma madeira mais "Hard Rock", sem dúvida. Boa, mas falta-lhe um pouquinho de sutileza.




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